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16 novembro, 2013

Notícia

Um andante andava desconexo a chutar pedras quando, em movimento linear, uma zuniu para dentro das engrenagens de uma bicicleta, que cambaleou e parou seu funcionamento e cujas partes, em rotatividade, atingiram as engrenagens de um carro de condução, que parou seu funcionamento imediatamente, jogando uma peça solta que, em trajetória circular, alojou-se nas engrenagens de um andante do parque, que, fragmentado, parou de funcionar instantaneamente, espirrando fluido vital em uma árvore próxima. Esta, porém, ainda está funcionando.

Portas

Uma porta fechada.
Você com o nariz na superfície plana, alisa a matéria, dedilha e perturba todas as frestas, no desespero dos cegos repentinos. Você fala, como se fosse nada, e cala como se escutasse tudo. Você sorri, passeia, assim como nem sabe. Você bate, quando já cansou de lembrar.
É uma porta fechada.
Deve-se respeito às portas fechadas.
Elas são o limite do que não pode ser.

Fato

Tenho uma mãe bem mãe, com biscoito e palhaçada, que é mãe, pai e filha caçula. Tenho também uma mãe que é inexplicavelmente amor, que sou eu e esta árvore do meu lado, e é minha mãe, mãe de minha mãe, de meus futuros filhos e de todo o resto. Dois amores de criação. É, então, por certo e bem quisto que eu fosse destinada a conhecer o amor feminino na vida, reconhecer e amar o que me cerca com a mais sinuosa das almas. A de mulher. Orgulhosamente.
E ali vou te dar as palavras. Na clareira cega onde antes espicaçavam pontadas em minhas mãos, pernas, braços, e onde o vento ameaça a qualquer instante espalhar o verde por sobre as pedras. Nessas mãos vão repousar as palavras, arfantes sobre minhas feridas.

Do fim ao fim

E de nunca mais morrer
correr no sonho sem despedida
de vida estrangulada
pálida pele e azia
Fazia dias mais normais
mais carcaças em movimento
tormento saciado
afogado em alimento
não tento morrer

Pico

Uma gota
cai na poça
uma atrás da outra
Curvado sobre o silencio
o maníaco sereno
palco pequeno
de dor

Ilus

Tira as roupas peça por peça, em plena praça pública.
Nunca houve show tão inusitado pelas bandas da cidade de pedra.
Despia-se de cada proteção com velocidade de virar de tempo, desfazendo-se também da piedade por perdê-las.
Moços, moças, todos paravam os olhos no espetáculo. Seios, barriga seca, pele e sinais. Púbis, pernas, rosto e pés molhados. Olhava para o nada, sorria de leve, de dor.
Ninguém viu quando chegou, não soube nem houve fim, no frio fim de tarde.
Verônica acabava naquele momento a vida de ser Verônica mecanismo.
Verônica, naquela loucura de revelar-se, de ser pura e derme, virava arte.

Felipe era um menino magro, ainda não muito alto, e piscava muito. Suas roupas eram sempre um tanto folgadas e rôtas. Felipe tinha sido criado por sua avó desde os dois meses de idade, a Mãe Nana. Era a vida toda Felipe e Mãe Nana numa casinha pequena, bem pequena, como se fosse só pra caber os vasinhos de violeta de Mãe Nana. Eles se amavam com um amor de linha e agulha.

Felipe era um menino "avoado", como diziam seus professores, não prestava bem atenção às tarefas, às aulas, e nem mesmo desenhava no caderno enquanto isso, como faziam seus colegas também pouco atentos. Felipe batucava. Felipe batucava com lápis, caneta, borracha, pedaço de arame de caderno, canudo da cantina, graveto do meio da rua, e, se lhe tirassem tudo isso, Felipe batucava com os dedos.

Desde que entendera o mundo dos sons, Felipe procurava, achava e se enfiava em toda brecha que podia para poder tocar. Já tinha tocado chocalho, tambor de mão e de baqueta, apitos, instrumentos de metal, até pandeiro Felipe já tinha tocado. Ninguém lembrava muito de Felipe, afinal, ele passava mais tempo no mundo dos sons do que no das pessoas. E aí Felipe já participava, ao mesmo tempo, de 4 grupos de música, um deles só de percussão, entre sua cidade e os municípios vizinhos, sem instrumento algum na casinha a não ser um par de baquetas que ganhara de um gringo, e provavelmente o único que lá caberia sem empurrar Mãe Nana e seus vasinhos para fora.

Chegava uma apresentação, Felipe não podia perder. Nunca havia estado em uma apresentação assim. Era um desfile, e ia ser dos grandes. Felipe estava numa correria, arrumar faixas, alças, fardas de cetim brilhante, sapatos. Mãe Nana estava na correria com ele. Mãe Nana tinha que achar tudo o que Felipe ia precisar, ia gastar dinheiro, mais do que parecia ter de onde tirar, andando bastante no seu passinho curto e decidido atrás de cada coisa que faria seu neto ficar bem bonito no desfile.

Tinham conseguido tudo. Felipe estava nervoso. Pouco tinha conseguido pregar os olhos na noite anterior, se arrumava, mal acertando os botões da camisa. Estava pronto. Mãe Nana olhava da porta, seu neto fardado, o cabelo brilhante engomado, sapatos novos. Olhava seu filho de olhos brilhantes, de mãos agitadas procurando falhas na vestimenta e um sorriso enorme no rosto. Antes de ir ele disse "Obrigado", no tom mais grave que ele usaria. "Vá pro seu batuque", ela disse,"Vá com Deus", ela disse.

Na rua, o menino feliz e com pressa.

Mãe Nana numa casinha sem violetas.